Ela, silêncio

Percorria tudo com os olhos, o quanto podia, atentamente. Sabia que o tempo seria curto, que ali haveria muito a ser descoberto, aos poucos, talvez, ou nunca. Porque uma variedade de minúcias estava diante de si, mal sabia por onde começar. Arte no ar. As fotos dos autores e cineastas preferidos, pinturas que acalmam a alma, filmes que mudam histórias, e os livros... Este era o retrato de uma personalidade que, mesmo outrora hesitando em ser revelada, não conseguia esconder os traços marcantes e delineadores que lhe são exclusivos. Porque a arte, quando absorvida, passa a fazer parte de nós, dela em especial. E ainda, aquela mesinha cheia de lembranças, carinhosamente apelidada por mim o cantinho da delicadeza. Rastros do além-mar, objetos os mais inusitados. Foi ali que me encontrei. Literalmente. Havia um pedacinho meu. Quanta delicadeza a dela. Tudo o mais era branco, o chão era um labirinto, o vazio parecia preenchido, tal qual era ela, a linha tênue entre o inatingível e o infinito. Um gesto, um carinho, um talento e quanto mais a conhecia, mais percebia que jamais poderia saber quem ela é. Só sei que não é daqui, não pode ser, é a menina de lá, onde só se pode chegar com as asas da imaginação. Eu passaria uma vida tentando, desejando o impossível apesar de saber que um dia ela vai, para nunca mais voltar e eu não conseguirei alcançá-la. Me desfaço em lágrimas, aperto no peito e o doce afeto guardado na memória, a lição, o exemplo, a admiração, a pitada de sentido para a vida. Sim, partilhamos. As conversas eram difíceis e eu gostava de ouvi-la falar. O suave movimento dos lábios, os cabelos esvoaçantes e os olhos cristalinos facilmente me distraíam, não menos que a brilhante retórica, embora eu tivesse que me esforçar para manter a atenção nas palavras, não nos encantadores gestos. Sabia que chegaria a minha vez, pensava cuidadosamente em algo que pudesse confortá-la, em vão, nada seria o bastante. Nada. Caminhamos juntas também, ela reparou nos meus pés, eu achava a noite na cidade mais bela por poder senti-la ao meu lado. As palavras somem, enfim, esvaziam-se, já não têm importância. Seus pensamentos rapidamente fluem e tomam conta daquilo que outrora estava comigo. Observo, também em silêncio, jamais poderia quebrar este encanto, nem mesmo quando nossos olhares se cruzavam. Diferentes expressões assumem seus sentidos, dispersa, volta, sente, voa. Observo, iluminada naquele singelo momento onde sinto-me lisonjeada por poder estar ali e, de certa forma, participar de uma parte de sua metamorfose. O silêncio reina, somos capazes de partilhá-lo, porém, antes que eu a veja partir, ela me agradece pela companhia, delicada sempre, quando eu é quem sou grata por ter sido escolhida para a cena da protagonista à deriva. Ela faz da vida um palco, onde todos esperam, ansiosamente, para vê-la passar. É ela, silêncio.

Comentários

  1. Quanto mais vc escreve, mais vc me vicia em vc!
    Adoro seu blog. Me sinto perto de vc, mesmo estando tão longe!
    :-D

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