Apenas um fim

Escovou os dentes como nunca escovara antes. Olhava atentamente, talvez pela primeira vez, para a única parte óssea externa em seu corpo. Fazia força, comprimia a escova como se quisesse desgastar as cerdas todas por completo. Seria a última vez que escovaria os dentes ali, olhando-se naquele espelho. O que ela tanto sonhara em ter – e teve – seria, agora, parte do passado. Um passado que ela deixaria fisicamente para trás – não havia escolha – mas que nunca deixaria de fazer parte dela. Queria ter a satisfatória sensação de ter vivido tudo o que lhe coube, intensamente, condensada naquele último instante em que aprendera a escovar os dentes, e só. Havia apenas uma última pitada de pasta, então pressionou o tubo com toda a força que podia juntar entre as pontas dos dedos para gastar aquele restinho de pasta de dente que hesitava em sair. E hesitava porque, depois de gasta, se nada sobrasse, viraria lixo, seria descartada, junto com a escova de cerdas gastas, e não poderia mais fazer parte daquele banheiro e entrar nas bocas das pessoas que ali passavam. Era o dilema da pasta. Outra assumiria seu lugar, em outro lugar, escovando os mesmos dentes daquelas velhas conhecidas pessoas, que passariam a não serem mais as mesmas. O lugar, outrora comum, seria percebido sob outros ângulos agora, já que os olhos não enxergavam mais da mesma maneira. Assim, a pasta hesitante finalmente saiu, escovou seus últimos dentes e desfez-se no tempo.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

noite-dia

E agora?